Qualidade Nutricional e Obesidade #39
“Alimentos” ultraprocessados e saúde, ou a falta dela.
Por muitos anos a classificação dos alimentos foi organizada através dos macro-nutrientes encontrados em abundância em cada alimento. Desta forma, diversos alimentos eram categorizados como sendo carboidrato, desde uma fruta ou um grão inteiro de um cereal, até farinhas, biscoitos, pães e doces. Como proteínas eram categorizados carnes, embutidos, leite até sobremesas lácteas.
Isso mudou a partir de 2009 com a publicação de um documento, pela revista Public Health Nutrition, redigido pelo coordenador científico do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP, intitulado Nutrição e Saúde. O problema não é a comida, nem os nutrientes, mas o processamento. Surge então a classificação NOVA, que classifica os alimentos em 4 grupos dependendo do grau de processamento industrial a que foram submetidos. Esta classificação foi adotada pelo Guia Alimentar da População Brasileira, em 2014.
- Grupo 1 - Alimentos in natura ou minimamente processados
É aquele ao qual temos acesso da maneira como ele vem da natureza ou os que precisam de algum processamento como secagem, embalagem, mas que não têm adição de ingredientes ou transformações que os descaracterizem.
- Grupo 2 - Ingredientes culinários processados
São substâncias extraídas de alimentos do primeiro grupo por procedimentos físicos como prensagem, centrifugação e concentração como o azeite de oliva, ou extraídos direto da natureza, como o sal. Quando usados em pequenas quantidades, são perfeitamente compatíveis com uma alimentação nutricionalmente equilibrada e saudável.
- Grupo 3 - Alimentos processados
Composta por itens do primeiro grupo modificados por processos industriais relativamente simples e que poderiam ser realizados em ambiente doméstico. Contam com a adição de uma ou mais substâncias do segundo grupo, como sal, açúcar ou gordura. Inclui, por exemplo, conserva de legumes, frutas em calda e pães do tipo artesanal. Alimentos processados aumentam a duração de seus ingredientes originais, além de contribuir para diversificar a alimentação.
- Grupo 4 - Alimentos e bebidas ultraprocessados
São formulações de substâncias obtidas por meio do fracionamento de alimentos do primeiro grupo. Incluem açúcar, óleos e gorduras de uso doméstico, mas também isolados ou concentrados proteicos, óleos interesterificados, gordura hidrogenada, amidos modificados e várias substâncias de uso exclusivamente industrial. São frequentemente adicionados de corantes, aromatizantes, emulsificantes, espessantes e outros aditivo.
Incluem refrigerantes, bebidas lácteas, néctar de frutas, misturas em pó para preparação de bebidas com sabor de frutas, ‘salgadinhos de pacote, doces e chocolates, barras de “cereal”, sorvetes, pães e outros panificados embalados, margarinas e outros substitutos de manteiga, bolachas ou biscoitos, bolos e misturas para bolos, “cereais” matinais, tortas, pratos de massa e pizzas pré-preparadas, nuggets de frango e peixe, salsichas, hambúrgueres e outros produtos de carne reconstituída, macarrão instantâneo, misturas em pó para preparação de sopas ou sobremesas e muitos outros produtos.
O processamento não é necessariamente nocivo a nossa saúde. Ele faz parte de nossa história enquanto humanidade. Ao cozinhar ou germinar um alimento, torna-se mais fácil de mastigar e digerir. O processo de colher, separar, higienizar e embalar cereais ou grãos, os torna acessíveis a um número maior de pessoas.
O problema passa a ser quando o processamento não visa a qualidade do alimento, mas sim a facilidade, e principalmente o lucro de quem produz. Assim são produzidos a partir de ingredientes baratos, como amidos modificados, e óleos. Para melhorar sua palatabilidade acrescentam-se aromatizantes, corantes e adoçantes. Para aumentar sua durabilidade acrescentam conservantes, além de outros produtos químicos como emulsificantes, estabilizantes, acidulantes, entre outros. A intenção é criar produtos altamente lucrativos.
Para Daniela Neri, pesquisadora do Nupens, os ultraprocessados “hoje são embalados de uma maneira muito atraente e promovidos por estratégias de marketing muito sofisticadas e superapelativas, especialmente para crianças, o que pode explicar o consumo exagerado”.
Os estudos científicos mais atuais mostram o papel da qualidade nutricional do alimento na obesidade. Contrariando o que se acreditou por muito tempo, que se tratava simplesmente de calorias ingeridas x calorias gastas. Na verdade, se compararmos uma alimentação composta de alimentos integrais, ou seja, inteiros, na sua forma natural com uma alimentação composta por alimentos processados produzidos a partir de farinhas com açúcar e gordura, mesmo que as calorias ingeridas em ambas as situações sejam idênticas, o segundo grupo terá um maior ganho de peso, isto é, de gordura corporal.
Um destes estudos, realizado no National Institute of Health dos Estados Unidos, pelo cientista Kevin Hall, dividiu 20 pessoas em 2 grupos. Por 2 semanas foi oferecida uma alimentação sem nenhum ultraprocessado para um grupo enquanto para ao outro foram oferecidas refeições que continham a maior parte das calorias vindas de ultraprocessados. Em ambas, as quantidades de calorias eram iguais, assim como as quantidades dos micronutrientes. Após as 2 semanas foram invertidos os grupos por mais 2 semanas. O resultado: ganho de peso não saudável, em média 1kg em 2 semanas, quando no grupo dos ultraprocessados, e perda de peso saudável, de 1kg nas 2 semanas na alimentação sem ultraprocessados.
Um outro estudo foi desenvolvido por pesquisadores do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens) da USP, em parceria com o Imperial College London, no Reino Unido. Nele, foram avaliados o consumo de ultraprocessados em 9025 crianças durante 17 anos, dos 7 aos 24 anos de idade. Os resultados mostraram claramente que quem consumia mais ultraprocessados na infância tinha piores padrões de obesidade e saúde em geral.
Estudos como esses apontam a nível mundial a associação do consumo de alimentos ultraprocessados com a incidência de obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e depressão e com a menor expectativa de vida.
Além da saúde individual, estes produtos ultraprocessados impactam também o meio ambiente. São produzidos em grandes monoculturas, de trigo, milho, soja e cana de açúcar, ocupando vastas áreas, diminuindo drasticamente a biodiversidade. São culturas que recebem a maior carga de agrotóxicos, são em grande parte geneticamente modificados, além de produzir grande quantidades de resíduos, como os plásticos na qual esses produtos vêm embalados.
Como se não bastasse, estes produtos afetam inclusive a cultura. Ao redor do mundo, as tradições alimentares vão perdendo espaço e sendo substituídas a cada geração por esta massificação dos ultraprocessados. No Oriente, o consumo de arroz, legumes e hortaliças, na América Central, o feijão, o milho crioulo, na América do Sul, a incrível variedade de batatas, e aqui no Brasil, o famoso arroz com feijão, a mandioca, todos estes alimentos têm ocupado cada vez menos espaço nos pratos. As receitas regionais dos almoços em família, passadas de geração em geração vão sendo esquecidas e dando lugar a estes produtos por sua conveniência, rápidos, prontos para consumir, e que podem ser guardados por longos períodos.
Enfim, precisamos pensar enquanto sociedade, em como reduzir o consumo dos ultraprocessados. Para Murilo Bomfim, coordenador de comunicação do Nupens, as soluções passam por diversos fatores. O principal deles é a criação de políticas públicas de alimentação e nutrição, com o objetivo de ampliar o acesso aos alimentos in natura ou minimamente processados e restringir os ultraprocessados para garantir a alimentação adequada e saudável da população, a exemplo da iniciativa que ocorreu em 2020 no Programa Nacional de Alimentação Escolar, que estabelece limites para a compra de alimentos com base na classificação Nova.
Outros pontos importantes são ações como a restrição de ultraprocessados em cantinas escolares, a regulação da publicidade de alimentos, o reforço de iniciativas de educação nutricional e o refinamento das regras de rotulagem de alimentos, possibilitando que o consumidor tenha mais clareza e consciência em suas tomadas de decisão.
Fontes
Elizabeth, Leonie; Machado, Priscila; Zinöcker, Marit; Baker, Phillip; Lawrence, Mark. 2020. "Ultra-Processed Foods and Health Outcomes: A Narrative Review" Nutrients 12, no. 7: 1955. https://doi.org/10.3390/nu12071955
IBGE. Pesquisa de Orçamentos Familiares 2008-2009: despesas, rendimentos e condições de vida. Rio de Janeiro: IBGE, 2010a.
Murilo Bomfim – 11 perguntas que a ciência já respondeu sobre ultraprocessados. 2021
Daniela Neri - Crianças que consomem alimentos ultraprocessados se tornam adultos mais obesos. Nupens/USP. Jornal da USP - 1º/07/2021
***Texto elaborado pelo parceiro da Seed4life_saúdeintegrativa: Júlio Domingues Cechin.
Júlio escreve sobre alimentação além de atualizar os conteúdos do BLOG da Seed4Life conforme as novidades da ciência e da saúde.